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******************************NÃO contém spoiler******************************

Autora: Marian Keyes

Editora: Bertrand Brasil / Gênero: Chick-lit – romance contemporâneo / Idioma: Português / 784 páginas

Sendo autora de uns dos gêneros mais vendidos do mundo e considerada uma máquina de fazer best-sellers, Marian Keyes é amada por muitos e criticada por tantos outros. Taxada como escritora de romances vazios, renegados a subliteratura; a autora em questão, escritora do sucesso Melancia, prova que rótulos literários e afirmações infrutíferas como a de que seus livros são entretenimentos nulos e descartáveis, não passam de meras alegações que existem única e exclusivamente para reforçar a segregação e o preconceito já muito enraizados nas comunidades literárias, cujos valores narrativos parecem existir apenas nas obras consideradas clássicas. Mas como devemos enxergar o subgênero chick-lit, conhecido no Brasil vulgarmente como “literatura de mulherzinha”? O diminutivo na palavra mulher, já demonstra a errônea visão empregada quando o assunto são os livros cujo público alvo são os leitores do gênero feminino. O que encontramos nesses romances são de fato mulheres fúteis que só pensam em fazer compras, que “caçam” homens ricos com quem possam casar e situações bobas que não levantam nenhum tipo de reflexão e que não agregam em nada?

Confesso que fui durante muito tempo umas das vítimas da engenharia do consenso, acreditando que os pontos citados no primeiro parágrafo seriam exatamente (e exclusivamente) o que encontraria em uma obra denominada chick-lit. Mas eis que posso dizer que “Cheio de Charme” da famosa escritora irlandesa, me surpreendeu. O romance que citei e que me propus a ler em uma leitura conjunta, foi o meu primeiro contato com a autora e com o gênero supracitado. “Cheio de Charme” não é um livro perfeito.  A obra possui problemas tanto na construção de alguns personagens quanto no desenvolvimento narrativo. Mas passa longe de ser uma leitura rasa, de entretenimento bobo e de reflexões inexistentes.

Focado em mulheres desajustadas que parecem não saber seus lugares no mundo, o romance tem por objetivo abordar temas importantes como dependência química, relacionamentos abusivos, depressão, racismo, homofobia, relacionamentos familiares, profissionais e amorosos, além da sororidade. Assuntos essenciais que funcionam e moldam os pilares sociais e políticos de qualquer sociedade. O que já deixa claro que o que não falta na obra de Marian Keyes são reflexões.

O fato de possuir uma narrativa de fácil assimilação, um vocabulário acessível e personagens muitas vezes juvenilizadas, não faz de “Cheio de Charme” um romance bobo. É um livro que diverte e que flui, não parecendo possuir quase 800 páginas. As situações apresentadas me causaram irritação, incomodo e muitas vezes vergonha alheia. As mulheres de Keyes são personagens fragilizadas, que se autodepreciam, que se sujeitam a situações humilhantes e que se colocam durante muito tempo a margem de figuras masculinas. O que me levantou o seguinte questionamento: Onde está o valor feminista de uma obra como essa? Mulheres adultas que se comportam como adolescentes foi um dos pontos que me incomodaram. Achei alguns diálogos, algumas formas de enxergar o mundo e algumas atitudes inativas, como elementos deslocados que mais desconstruíram do que ajudaram a reforçar os aspectos de mulheres maduras, me passando muitas vezes a sensação que eu estava lendo uma obra teen.

Outro ponto que também preciso frisar, é que a autora passa quase 60% da narrativa flertando com diversos assuntos e se demorando mais que o necessário para se aprofundar em alguns; deixando inclusive alguns temas importantes passarem despercebidos ou tratando outros com uma carga excessivamente cômica e anormal. Trazendo para sua obra uma inverossimilhança que empobrece um pouco o romance se formos analisar de forma mais crítica quando nos deparamos com o potencial da obra em si.

Em contrapartida, a autora trabalha de forma quase excepcional os dilemas femininos que se chocam de forma harmoniosa com as intempéries do mundo pós-moderno. Se aprofundando de forma bacana em dois assuntos importantes que infelizmente ainda estão em voga (relacionamentos abusivos e dependência química). “Cheio de Charme” é uma obra rotulado, renegada, divertida e reflexiva. Uma história com diversas camadas narrativas, psicológicas e sociais. E volto a repetir: Onde está o valor feminista da obra? O enxerguei nas camadas que unidas fazem de “Cheio de Charme” um gatilho para seu público alvo. Um aviso sobre a importância de se valorizar, não se tornando refém de traumas ou de inseguranças que te levarão à beira do precipício; moral, psicológico e social, distorcendo e impactando sua realidade de forma mais do que negativa.

Como citado no primeiro parágrafo do texto crítico aqui exposto, a obra de Marian Keyes prova que ser taxado como raso e literatura para mulherzinha são afirmações injustificáveis e que não se sustentam quando confrontadas com as discussões inseridas pela autora. É um romance que pode ser lido por qualquer um independente do gênero, mesmo que a identificação e o público alvo sejam em sua maioria femininos. “Cheio de Charme” é um romance que enfrenta e que supera os rótulos a si empregados com graciosidade e personalidade. Uma história imperfeita, que muitas vezes me pareceu deslocada e infantil, mas que no final das contas me fez perceber o porquê do sucesso que obteve, se consagrando como um dos principais romances da literatura contemporânea. Quando analisado de forma madura, o termo chick-lit perde completamente sua significância. Toda e qualquer obra deve ser analisada de forma profissional, onde não nos preocupamos em apenas manter de forma desesperada o status quo de obras consagradas. Um dia ainda verei não somente essa como muitas outras obras serem tratadas como o que de fato são. Romances divertidos, reflexivos e que instigam nossa curiosidade intuitiva, mostrando suas forças inventivas como um bom romance contemporâneo deve fazer.

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