*****************************NÃO contém spoiler******************************
Foi no final do século XVII que começou a surgir o pietismo, movimento de cunho religioso que reforçava e valorizava as experiências religiosas individuais, onde os adeptos deste movimento eram intransigentes e interpretavam o conteúdo da Bíblia ao pé da letra. Foi neste período de mudanças religiosas que nasceu e cresceu Hermann Hesse, o escritor alemão mais lido do século XX. O pietismo foi o ponta pé para o surgimento de muitos outros movimentos de cunho religioso, além de ter influenciado diversas figuras ilustres e impactado de maneira negativa a infância deste enigmático e aclamado escritor.
Crescido em uma família de extrema religiosidade, Hermann Hesse foi pressionado a aceitar os dogmas do pietismo. Por não aceitar tal linha de pensamento e sendo influenciado por Friedrich Nietzsche, que criticava fortemente a religião cristã, foi considerado a ovelha negra da família e consequentemente renegado pela mesma. Suas experiências familiares, sua dificuldade de se relacionar com os outros e sua busca constante pelo verdadeiro significado de sua existência, transparecem em sua elogiada obra “Demian.”
Lançada pela primeira vez em 1919, a obra retrata a jornada de um jovem que busca entender o funcionamento do mundo, através de uma jornada de autoconhecimento e formação de caráter. Emil Sinclair, o protagonista e pseudônimo utilizado pelo autor para a publicação de sua obra, é um romance iniciático, também conhecido como romance de educação, que tem por objetivo apresentar o desenvolvimento de um período específico da vida de um personagem. É um braço do romance de formação que apresenta um desenvolvimento completo, passando por mudanças tanto físicas quanto psicológicas. Exatamente o que Charles Dickens faz em “David Copperfield”.
Em “Demian”, Hesse apresenta um personagem em fase de descobertas que durante sua vida escolar, acaba conhecendo o enigmático personagem que dá nome a obra. É Demian, o destemido e inteligente colega de classe que irá mostrar a Sinclair uma maneira mais ampla de enxergar o mundo. Considerada uma obra de extrema importância não só para o portfólio do autor, mas principalmente para a literatura internacional, “Demian” é muito mais complexo do que aparenta. É como olhar para um iceberg… há muito mais no fundo do que na superfície. Não basta ter apenas uma extensa bagagem literária.
Conforme publicada em uma matéria na revista Bula escrita por Edgar Welzel:
”Para compreender a beleza, a profundidade e o sentido da obra literária de Hermann Hesse é preciso entranhar-se nos labirintos da alma do autor. É necessário perceber Hermann Hesse como indivíduo, entender o ambiente em que viveu e conhecer a sua genealogia.”
Muitos críticos literários comparam Hermann Hesse com o magnífico Franz Kafka, devido a carga psicológica de seus escritos e devido ao peso autobiográfico empregado nas mesmas. O que encontramos em “Demian” é em sua essência muito parecido com o que encontramos em “A Metamorfose”. Ambos os romances empregam características da vida dos autores, além de aspectos psicológicos e uma narrativa repleta de metáforas. Muito se questiona sobre a existência do estranho colega de Sinclair. Não seria ele uma extensão “física” dos questionamentos do protagonista? Não seria ele um exemplo perfeito do desespero do personagem central por respostas? Tanto Kafka quanto Hesse não possuíam semelhanças apenas em suas obras, mas desenvolveram psicológicos semelhantes. Tanto um como outro preferiam suas próprias presenças ao invés de estarem na presença de outros. Já dizia o próprio Kafka quando questionado sobre seu isolamento: “Nada que não é literatura me interessa!”
Mas preciso destacar que as obras citadas possuem semelhanças, mas também possuem muitas diferenças. “Demian” é uma história onde o foco são os diversos questionamentos religiosos, filosóficos e metafóricos. Já “A Metamorfose” é um romance psicológico que trata sobre a digressão do comportamento humano, tanto individual quanto grupal.
Herman Hesse teceu com maestria uma narrativa que cativou os jovens alemães e que serviu como símbolo libertário para os mesmos. Tive uma experiência de leitura muito mais tranquila do que imaginava e considero a escrita de Hesse muito mais fluída do que a de Kafka. Mas claro que esta é uma percepção meramente pessoal e você poderá ter uma opinião totalmente diferente da que exponho aqui.
A edição que li, a de 50 anos de lançamento da obra no Brasil da editora Record, traduzida por Ivo Barroso, possui um posfácio fantástico escrito também pelo tradutor e é uma excelente edição para quem deseja ler este romance. Bem traduzida, bem revisada e bem diagramada.
Finalizo aqui minha resenha com uma citação de Otto Maria Carpeaux sobre Hesse que resume bem o autor e o que encontramos em “Demian”.
“A vida de Hesse foi um caminho de sucessivas autolibertações, através de revoltas do individualista contra a escola, contra a família, contra o cristianismo, contra o estilo burguês de vida, contra a guerra, contra a Europa e contra todos os tabus que o lar, a sociedade, a religião e o Estado querem impor”.
[…] CONFIRA A RESENHA DE DEMIAN CLICANDO AQUI […]
Essa obra é meu primeiro contado com o Hesse e concordo em ser mais fluída que Kafka e achar a primeira mais exigente para compreender e absorver todas as reflexões que o jovem Sinclair enfrenta.
Ótima resenha, obrigado por compartilhar aqui.
forte abraço!
Obrigado Melk, espero que sempre passe por aqui para acompanhar nossas resenhas e críticas. Grande abraço!!