
(HQ) Peter Pan: Uma perspectiva interessante sobre a condição humana.

******************************NÃO contém spoiler*****************************
(CONFIRA A RESENHA DE PETER PAN [OBRA ORIGINAL] CLICANDO AQUI)
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Autor: Régis Loisel / HQ baseada na obra de James Matthew Barrie
Editora: Vents d’Ouest / Gênero: Fantasia / Idioma: Francês / 336 páginas
Tal HQ já foi publicada no Brasil pela editora NEMO / Grupo Autêntica em 4 volumes
Quando decidi ler a adaptação em nona arte de Peter Pan de Régis Loisel, esperava encontrar apenas a transcrição ilustrada do clássico de J. M. Barrie. Mas o que encontrei foi algo superior a obra original. A respectiva HQ me surpreendeu pela audácia do autor em não apresentar mais do mesmo, além de se aprofundar na narrativa e entregar respostas de questões tratadas de maneira subjetiva na obra-prima infantil.
Funcionando como um prelúdio, Peter Pan em HQ traz backgrounds pesados que nos possibilitam entendermos melhor toda a repugnância do personagem título em relação aos adultos. Acompanhamos de maneira ácida e cruel toda sua infância, repleta de torturas psicológicas por parte da mãe, de abusos sexuais por parte de diversos personagens e sua constante fuga para pensamentos fantasiosos que funcionam como válvulas de escape, resultados de traumas decorrentes das diversas aprovações que a vida lhe impõe.
Com diálogos e cenas pesadas e repletas de significados sexuais, Loisel narra uma trágica infância que colabora para a formação de alguém que se nega a crescer por simplesmente enxergar tal fase como a mais pura representação da corrupção humana. Peter Pan (a obra original) não é um clássico infantil com passagens leves e com um protagonista o qual as crianças devem se inspirar. Ele é cruel, assassina adultos e sente prazer em tal ato. Esquece do que faz e segue em frente como se tudo não passasse de mera brincadeira. No âmbito psicológico, trata-se de um comportamento que funciona como a revanche de traumas não superados. Mas quando lemos a obra de J. M. Barrie, o máximo que podemos fazer é nos questionarmos. Por que tanta resistência e a constante negação em crescer? De onde vem tamanha repugnância por adultos e pela figura materna? No caso da HQ de Loisel, estas questões se fazem desnecessárias, já que a proposta de tal adaptação é exatamente respondê-las.
Temos a realidade se contrapondo ao fantástico. Temos dois Peter-Pans em um. Enquanto na Londres Dickensiana acompanhamos uma criança tentando se encaixar no meio das imundícias e crueldades da famosa cidade, em Neverland (Terra do Nunca) temos a fantasia à flor da pele. Criaturas mitológicas, uma ilha mágica, tesouros, sereias, fadas, piratas, índios… todos convivendo e lutando para encontrarem um novo líder que deve defender o maior de seus tesouros, que se não protegido, colocaria em cheque suas existências. Uma trama bem arquitetada que aborda temas polêmicos; que diverte, que choca e que nos faz pensar sobre nossos papéis como seres-humanos / cidadãos. O tema é complexo, mas necessário. Nascemos monstros ou é a sociedade que nos corrompe?
Temos a origem de diversos personagens. Passando por Peter-Pan, Sininho (outra louca e assassina) e até o fabuloso Capitão-Gancho. As respostas são convincentes e tal HQ consegue apresentar ainda mais peso do que a obra a qual ela se inspirou. Loisel também insere em sua já pesada e dramática versão um elemento histórico que chocou não somente Londres em 1888, como o mundo inteiro… um elemento enriquecedor. A trama tem seus momentos cômicos, cenas imortalizadas que se repetem aqui, mas possui uma carga psicológica complicada de ser digerida. Tanto a obra original quanto a adaptação em quadrinhos que aqui resenho, devem ser lidas, analisadas e problematizadas. Diferente do que muitos acreditam, Peter Pan não se trata de uma estória sobre manter a inocência e abraçar a imaginação. Trata-se de uma narrativa sobre negação. A recusa de crescer e seguir em frente.