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******************************NÃO contém spoiler******************************

Parar para analisar e resenhar uma obra de tamanha importância universal como “Ilíada” de Homero, que colaborou não apenas para a formação literária, como para formação cultural, intelectual e civilizatória, é uma tarefa a que me disponho sem a intenção de me afirmar como alguém capaz de destrinchar um monumento de tamanha complexidade analítica, como a primeira obra da literatura ocidental aqui supracitada. Apenas desejo dividir algumas percepções (meramente pessoais) e alguns resultados reflexivos, provenientes de algumas pesquisas referentes ao meu processo de leitura.

“Ilíada” muito antes de sua narrativa em si, já levanta uma questão interessante e muito semelhante com a questão Shakespeariana. Questão esta, atrelada a existência ou não do criador da obra. Seria Homero a representação unilateral de vários poetas (os cantores responsáveis pela disseminação de histórias em forma oral, chamados de aedos) ou seria ele de fato alguém que existiu? Pra alguns teóricos e críticos literários, tal questão se torna irrelevante quanto comparada com a importância da obra em si. Afirmação a qual discordo, já que encaro tal ponto de interrogação como de importância significativa para o processo de compreensão/aceitação do que se lê, devido a diversos pontos chaves da narrativa que se contradizem entre si, e que se vista como pontos de vista diversos que foram sendo alterados ao longo dos anos de uma pessoa para outra, se torna algo mais aceitável e verossímil, o que não acontecerá se você enxergar a obra como a filha de um único criador.

Mas do que se trata “Ilíada”?

Após escolher Afrodite como a deusa mais linda entre todas, Páris, filho de Príamo, rei de Troia, acaba ganhando da deusa o presente na forma do amor de Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, a qual em um ato de loucura acaba aceitando fugir com ele para Troia. O que acarreta em uma guerra, onde Menelau exige a devolução de sua infiel esposa; a mulher mais linda de todas, cuja beleza se assemelha a uma divindade.

“Não é ignomínia que Troianos e Aqueus de belas cnêmides
sofram durante tanto tempo dores por causa de uma mulher destas!
Maravilhosamente se assemelha ela à deusas imortais.
Mas apesar de ela ser quem é, que regresse nas naus;
que aqui não fique como flagelo para nós e nossos filhos.”

Através deste acontecimento e do embate do que se fazer em relação a isso, conhecemos Aquiles, o protagonista, o principal herói grego, que após um embate com seu superior (ironicamente também por causa de mulher), acaba se negando a participar da guerra, apresentando desta maneira, o início do plot principal de “Ilíada”, a ira de Aquiles, que irá moldar todo o resto da história e que irá culminar em um final bastante interessante sobre redenção, compaixão e fé. Preciso frisar também que o foco não é a guerra de Troia. O foco é narrar um fato ocorrido no nono ano da guerra, fato este que dura apenas 54 dias. Um fato pequeno perto dos dez anos de guerra.

Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles

Trata-se um poema épico que apresenta tradições, atos heroicos e a solidificação dos cantos orais em forma visual, na intenção de registrar e salvar conhecimentos culturais de uma época. Sempre levando em consideração a importância de questões como a glorificação heroica, impacto de nossas ações e decisões sobre outrem, a dubiedade do bem e do mal na visão humana meramente intrínseca e o o equilíbrio do livre arbítrio quando encaramos o impacto divino sobre nossas ações.

É uma narrativa não linear, repleta de digressões, construção de versos imersivos, e recheada de referências mitológicas. Escrita no grego arcaico, traz peso histórico e mistura deuses com mortais em uma jornada trágica, irônica e cômica, o que a transforma em uma obra de metaficção, onde o autor brinca com “fatos históricos” e ficcionais.

Eu achei os pontos cômicos e as contradições através de diálogos, empecilhos difíceis de serem superados. Não me importei muito com os personagens em si, a não ser em dois grandes pontos narrativos, sendo na verdade, os mais famosos quando se trata de “Ilíada”. Os deuses como manipuladores, que tratam os mortais como peças de xadrez, são chatos e interessantes na mesma proporção. Aquiles é um personagem que desperta em nós diversos tipos de sentimentos (o que é bom) e Heitor seu grande arqui-inimigo, filho do rei de Troia e irmão de Páris, a mesma coisa. Gostei, mas esperava bem mais. Mas desta vez não sei se a culpada foi de fato a expectativa.

A dificuldade de se ler uma obra como essa, dependerá da edição e da tradução que escolher. Eu a li quase toda na edição da Companhia das Letras, traduzida por Frederico Mendes, em versos livres. Mas li e estudei também mais três edições fazendo leitura comparativa. O que posso dizer é que achei “Ilíada” uma obra bem acessível e de fácil compreensão. Lógico que se você nunca leu uma epopeia antes, não conhece os deuses gregos e tem dificuldades com obras cuja linguagem é um pouco mais rebuscada, terá sim um pouco mais de dificuldade. Aconselho a escolherem traduções livres que apresentem o texto em prosa. Pois trazem mais clareza, maior fluidez e uma facilidade ainda maior quanto a compreensão do conteúdo textual. Indico como uma primeira incursão. Como primeiro contato com a obra e não como leitura definitiva.

Exemplos de edições e traduções:

Início de Ilíada:

Edição Editora Companhia das Letras (Penguin) – Tradução: Frederico Lourenço

(Versos livres – Tradução Premiada, mas que não segue a métrica original)

Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe os Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus)
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles

***

Edição Editora Benvirá – Tradução: Haroldo de Campos

(Tradução criativa – o autor insere neologismo e conteúdo inexistente na obra original com a intenção de melhorar o texto, mas sem perder a essência Homérica) ***Sou 100% contra traduções criativas, acho um desserviço. Portanto, esta é a tradução que mais me incomoda. No trecho abaixo vocês não perceberão muita diferença, acredito eu. Mas acreditem, ao longo da leitura, elas aparecem e são muitas.***

A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles,
o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas
trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades
de valentes, de heróis, espólio para os cães,
pasto de aves rapaces: fez-se a lei de Zeus;
desde que por primeiro a discórdia apartou
o Atreide, chefe de homens, e o divino Aquiles.

***

Edição da Editora Nova Fronteira – Tradução: Carlos Alberto Nunes

(Tradução com tratamento mais histórico, esvaziamento literário e “conexão direta” com a obra original. Possui mini-textos introdutórios de  contextualização do assunto retratado antes do início de cada canto. Linguagem facilitada e texto em prosa)

Canta-me a Cólera — ó deusa! — funesta de Aquiles Pelida,
causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta
e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos
e esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados
e como pasto das aves. Cumpriu-se de Zeus o desígnio
desde o princípio em que os dois, em discórdia, ficaram cindidos,
o de Atreu filho, senhor de guerreiros, e Aquiles divino.

***

Edição da Editora Berlendis & Vertcchia Editores – Tradução: Manoel Odorico Mendes

(Tradução mais elogiada e considerada a mais difícil. Uma das primeiras realizadas  e que mais se aproxima do espírito poético e  da sonoridade Homérica. Comparada a outras traduções, esta está no topo e é colocada lado a lado com traduções consagradas feitas em outros idiomas)

Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles
A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos,
Verdes no Orco lançou mil fortes almas,
Corpos de heróis a cães e abutres pasto:
Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem
O de homens chefe e o Mirmidon divino.

***

Pesquisem e vejam qual edição mais lhe agradam e com qual sua leitura fluirá melhor. A única que eu de fato não indico, é a traduzida por Haroldo de Campos. Encaro a tradução realizada por ele como uma mutilação que mais empobrece do que enriquece a obra. 

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