******************************NÃO contém spoiler******************************
Autor: Cormac McCarthy
Editora: Alfaguara / Gênero: Faroeste / Idioma: Português / 352 páginas
Certa vez um professor de literatura afirmou em sala de aula que um livro deve nos perturbar (não necessariamente no sentido ruim), nos deixar incomodados, pensativos e nos desafiar como leitores desde o momento em que o abrimos e iniciamos a leitura. Se uma obra deve exercer essas funções na jornada de um leitor, então caros amigos, “Meridiano de Sangue” cumpre com maestria o seu papel. Embarcar na leitura da elogiada e emblemática obra de Cormac McCarthy, não me foi um processo fácil e nem dos mais agradáveis. Com uma escrita experimental e uma narrativa bastante linear, McCarthy tece uma história deveras sangrenta, que se desenvolve através de uma estrutura textual constituída de sentenças longas, com fluxo narrativo contínuo que não sofre interrupções pontuais – com exceção do ponto final que exerce sua função gramatical de encerrar uma sentença e iniciar outra – se fundindo com seus diálogos que se misturam com a narrativa onisciente, já que não são apresentados com travessão e nem com as aspas (técnica utilizada em textos em inglês). O que traz à escrita do escritor uma “inovação” estilística muito elogiada pela crítica especializada, já que quem inova, se reinventa, surpreende e se destaca. (O que não significa que tenha me agradado)
Se utilizando de fatos históricos, “Meridiano de Sangue” traz a realidade à superfície da ficção, entregando ao leitor um recorte importante da história norte-americana, nos colocando em uma jornada de confrontos entre índios, mexicanos e americanos, onde o que se vê são corpos sendo desmembrados, escalpados, crianças estupradas e muito sangue jorrando, o que faz total sentido ao título da obra, ao mesmo tempo que choca e encanta, não pelas barbáries descritas ao longo das 352 páginas, mas sim pelo lirismo e metáforas inseridas em sua escrita, o que se assemelha e muito ao que Nabokov fez com maestria em Lolita.
Mas nada supera na obra de McCarthy – por mais elogiado e genial que seja – um dos personagens mais interessantes, assustador, enigmático e inteligente que tive a oportunidade de conhecer. Juiz Holden, um homem alto, careca, que não possui pelos pelo corpo, pedófilo, assassino, poliglota, “onisciente”, que nunca dorme, que não envelhece, que se diz imortal, que caminha através do fogo sem se queimar e que fascina e amedronta não somente os personagens, mas também ao leitor. Quem seria este ser? O diabo em forma humana? Tal questionamento intriga e coloca o romance gótico de MarcCarthy ao lado de obras fáusticas como “Fausto” de Goethe e “Grande Sertão Veredas” de Guimarães Rosa. Tal antagonista se equilibra muito bem com o protagonista Kid, o garoto de comportamentos ambíguos, de inocência perdida, desejado e perseguido por Holden. A jornada e embates entre os personagens nos faz questionar os limites e raciocínios quanto a crueldade humana e a humanidade em sua amplitude. Em meio a tantos conflitos onde vidas são diariamente ceifadas, não estaria realmente o diabo entre nós?
“O juiz se curvou para mais perto. O que acha que é a morte, homem? De quem estamos falando quando falamos de um homem que existiu e não existe mais? Serão esses enigmas incompreensíveis ou não farão parte da jurisdição de todo homem? O que é a morte senão um agente?”
“Não faz diferença o que o homem pensa da guerra, disse o juiz. A guerra perdura. É a mesma coisa que perguntar o que o homem pensa da pedra. A guerra sempre vai existir. Antes do homem aparecer, a guerra estava a sua espera. A ocupação suprema à espera do praticante supremo. Assim foi e assim será. Assim e de mais nenhum outro jeito.”
Entretanto, por mais que eu veja o romance de Cormac McCarthy com diversos pontos interessantes a serem analisados; devo frisar que suas descrições quase nulas a respeito dos personagens, dificultou e muito minha visualização dos mesmos. Esse aspecto atrelado a sua narrativa repleta de situações repetitivas fizeram com que eu não conseguisse me imergir completamente na história, o que resultou também no meu não apego aos personagens. Contudo, suas descrições ganham maior profundidade quando se volta para a ambientação – para as cenas de confrontos e massacres – onde o autor não se poupa e nem nos poupa das atrocidades que faz questão de narrar com detalhes sórdidos, que enojam e traz à tona o objetivo da obra… a de nos chocar.
Como romance gótico, faroeste, fáustico e crítico, ele funciona. Mesmo com sua aridez e narrativa direta, sem muita emoção e curvas narrativas, a obra de McCarthy impressiona. Talvez ele só não funcione como romance de formação como muitas o classificam. Tendo como referência obras clássicas como “Demian” de Herman Hesse e “David Copperfield” de Charles Dickens, devo dizer que “Meridiano de Sangue” navega de forma superficial quanto ao amadurecimento do personagem central. Sua ausência ao longo de milhares de páginas fazem de seu amadurecimento algo superficial que não me convenceu. Seu crescimento fica evidente apenas quando Kid (criança em inglês) passa a ser tratado pela nomenclatura homem. Uma técnica de escrita direta demais para os meus padrões analíticos e críticos de leitor.
“Meridiano de Sangue” é uma obra para se ler com muita atenção. Devemos decifrar os diálogos, as situações e narrações como se nossa vida dependesse disso. É uma leitura desafiadora e complexa, que traz questionamentos que estão além da literatura convencional. Tchékhov uma vez disse que o bom escritor era aquele que enxergava sua arte e sua vida através de uma perspectiva mais ampla, indo além de sua própria vida e tempo. Talvez esteja aí a resposta de como criar um clássico. Gostando ou não gostando, sendo um livro complexo, arrastado e as vezes maçante, a verdade é que “Meridiano de Sangue” já nasceu clássico. Um livro que se transforma e nos transforma.
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