******************************NÃO contém spoiler******************************
Autora: Lygia Fagundes Telles
Editora: Companhia das Letras / Gênero: Clássico brasileiro / Idioma: Português / 304 páginas
Conforme afirmado categoricamente por críticos literários ao longo dos anos e reforçado por consagradas listas (como a da revista Bravo), o sucesso e importância de “As Meninas”, romance de Lygia Fagundes Telles publicado em 1973 é algo incontestável. Com viés feminista, político e social, a obra se sacramenta como um dos mais importantes romances nacionais publicados. Com identidade, sagacidade e complexidade narrativa, a obra nos leva para um processo analítico desafiador, nos impedindo de sermos vítimas da superficialidade de uma leitura primária. Telles nos desafia a mergulharmos nas palavras tão bem inseridas de seu emblemático romance, nos entregando uma narrativa que vai além dos conceitos sócio-políticos tão presentes na história, e cuja estrutura textual foge sem pudor das regras gramaticais, flertando a todo momento com o coloquial e se aproximando de forma real com a oralidade nacional.
A escritora afirmou certa vez que um autor deve ser testemunha de seu tempo e sociedade, e com “As Meninas” ela reafirma tal pensamento, já que a obra a qual me dispus a ler e a qual compartilho aqui minhas simples percepções, é o retrato de um período histórico marcante de nosso país; a época em que tivemos que encarar uma ditadura militar.
Com três protagonistas que se tornam uma, o clássico de Telles mescla por diversos momentos três fluxos de consciência em um mesmo parágrafo, se misturando também com as intervenções do narrador onipresente e onisciente, que nada mais é do que a personificação criativa da própria autora. Tornando assim, a compreensão imediata do que está sendo dito e quem está dizendo o que, em algo confuso e que chega em vários momentos da leitura ao auge da complexidade. São Pensamentos que não passam de peças que se misturam e que devem ser lidas com calma, atenção e perspicácia, para serem devidamente decifradas. O romance de Telles navega por esferas diversas, passando pela pressão social e religiosa, inseguranças humanas, sexualidade e questões políticas.
Entretanto, por mais que seja apontado como um dos grandes relatos literários da ditadura militar brasileira, “As Meninas” é muito mais uma obra sobre o indivíduo, sobre a identidade feminina e sobretudo, sobre as protagonistas como personas enigmáticas a serem encaradas e desvendadas pelo leitor. Algo que o difere e muito de “A Casa dos Espíritos” da autora chilena Isabel Allende, onde a ditadura militar toma proporções narrativas muito mais vívidas e palpáveis. As protagonistas de Lygia Fagundes Telles, as três garotas moradoras de um pensionato em São Paulo e que se tornam amigas, dividindo seus anseios, perspectivas e vivências, são personagens confusas que vivem sem viver, que falam sem falar e que agem sem agir. Lia, estudante de ciências sociais e apoiadora de movimentos esquerdistas; Lorena, a mimada, rica e que se apaixona platonicamente por um homem casado; e Ana Clara, modelo, viciada em drogas e que se divide entre o namorado drogado e o noivo, são meninas que movimentam a trama e que criam elos com a realidade social… E que me foram encaradas como desafios a serem superados.
Em determinado diálogo, uma importante personagem traduz o que eu exatamente senti em relação a essas personagens.
“— Vocês me parecem tão sem mistério, tão descobertas, chego a pensar que sei tudo a respeito de cada uma e de repente me assusto quando descubro que me enganei, que sei pouquíssima coisa. Quase nada. ”
“As Meninas” é um romance excelente, anfigúrico e intimista, o qual muitas vezes nos deixa com a pulga atrás da orelha. O que é real e o que é invenção das personagens? Uma obra cujo grande trunfo é exatamente o que colabora para o afastamento de leitores menos persistentes; sua apaixonante complexidade que supera as ideologias narrativas sejam elas ficcionais ou meramente cópias críticas da realidade a qual se baseou.
Notas:
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O romance ganhou uma elogiada adaptação cinematográfica em 1995, protagonizada por Drica Moraes (Lia), Adriana Esteves (Lorena) e Claudia Liz (Ana Clara).
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As Meninas recebeu os prêmios Jabuti, Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras e “Ficção” da Associação Paulista de Críticos de Arte (apca)
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(CONFIRA A RESENHA DE “A CASA DOS ESPÍRITOS” CLICANDO AQUI)