Resumo:
Giorgio Vasari reconstrói a vida daquele que foi um dos maiores artistas do Renascimento Italiano. O crítico realiza a construção de uma narrativa histórica única e peculiar, a partir de uma breve retomada, ao longo de 11 páginas, das principais realizações do pintor e matemático em questão. Pouco é comentado sobre a vida pessoal de della Francesca; seu personagem enquanto figura pública, discípulo, mestre e pintor é o foco da biografia de Vasari.
O leitor também poderá observar breves comentários espalhados ao longo do texto sobre o aspecto formal de della Francesca. Vasari realiza uma quantidade significativa de pequenas análises sobre a forma, a busca pela perfeição, o uso da luz e da sombra e a composição em Piero della Francesca, bem como as inovações realizadas por esse último, principalmente no campo da matemática, que teriam influenciado muitos de seus discípulos, como Luca Signorelli (a que se faz referência também, em alguns momentos, como Luca da Cortona), Pietro da Castel della Pieve (Pietro Perugino) e Piero Borghese.
Resenha:
“Verdadeiramente infelizes são aqueles que, empenhando-se nos estudos para ajudar os outros e deixar fama de si, são impedidos, às vezes, ou pela doença ou pela morte, de conduzir à perfeição as obras que iniciaram”. Giorgio Vasari, crítico de arte e autor do livro “A vida de Piero della Francesca”, inicia com essas palavras o seu texto. Percebe-se a importância de se atingir a chamada “perfeição” para Vasari, que lamenta aqueles que são impedidos de realizar tal árdua tarefa. Nessas primeiras linhas o leitor já se confronta com uma importante reflexão que condiz com um dos pontos principais que regem o pensamento do crítico.
A História, enquanto ciência, estará muitas vezes presente nas reflexões do texto, ainda que de forma indireta. Logo na página 01, Vasari se refere ao tempo como “pai da verdade”. Porém, como o próprio título diz, a História será importante para o texto enquanto um dos elementos de construção da vida de Piero della Francesca, um dos principais artistas do renascimento italiano. Ainda na primeira página do texto, della Francesca é apresentado por Vasari como “mestre raro nas dificuldades de corpos regulares e na aritmética e geometria” e como “excelente na pintura”. Sabe-se que o artista é reconhecido pelas suas inovações na técnica e na pintura e Vasari irá se aprofundar nessa discussão ao longo das páginas de seu texto.
Piero di Benedetto de’ Franceschi, conhecido pelo grande público como Piero della Francesca, se destacou entre os artistas do Quattrocento. Diversos motivos proporcionaram esse destaque, mas o constante uso dos princípios matemáticos é um dos mais significativos. Vasari indica que della Francesca jamais se afastou das matemáticas, ainda que se dedicasse a pintura. O uso da geometria espacial e a presença da harmonia simples entre as formas contribuem para essa afirmação do crítico de arte.
Muito se indagou, entre os historiadores da arte, sobre qual seria o marco inicial do início de seu trabalho como artista. Nessa edição da obra de Vasari, a nota 5 apresenta a hipótese de James Banker, confirmada com documentos, de que Della Francesca teria iniciado sua carreira na pintura em 1439, como assistente de Antonio d’Anghiari, no auge de seus 15 anos de idade. Na página 03, Vasari identifica que um dos primeiros trabalhos realizados por della Francesca foi para uma figura identificada como Guidobaldo Feltro, velho Duque de Urbino. O artista teria feito, segundo o crítico e construtor da narrativa, figuras belíssimas, ainda que essas tenham sido, posteriormente, destruídas por um tempo de guerras. Um destaque especial também é atribuído aos seus escritos sobre geometria e perspectivas, que seriam frequentemente utilizados por della Francesca como “fios condutores” da sua construção artística perfeitamente simétrica e geométrica. Giorgio Vasari faz um breve comentário sobre um vaso realizado pelo artista em questão, que seria “certamente estupendo, tendo-lhe sutilmente traçado todas as minúcias, e feito girar com muita graça os escorços de todos aqueles círculos.”
Porém, nas linhas seguintes, outro aspecto merecerá a atenção do leitor: a visão de História de Giorgio Vasari. O crítico faz uma referência a Bramantino, que teria trabalhado com Rafael de Urbino, e afirma: “dele não posso escrever a vida nem as obras particulares por não se terem conservado, não me parecerá difícil, já que vem a propósito, fazer dele uma memória.” Entende-se, a partir dessas palavras, que a História de uma determinada figura se faz, para o autor, a partir da análise formal e cronológica de suas obras. Não se poderia escrever a história de Bramantino, uma vez que suas obras não se conservaram com o tempo e, dessa forma, pintor se conservaria somente como uma memória.
As descrições das obras feitas por Bramantino são breves, mas ainda merecem uma nota. Vasari realiza um breve comentário, em poucas linhas, sobre o aspecto formal de suas obras: “tinha pintado algumas cabeças em escala natural, tão belas e tão bem conduzidas que faltava apenas a palavra para lhes dar vida.” Observa-se, então, a retomada do seu ideal de perfeição e de beleza, que já havia sido mencionado em páginas anteriores.
Na página 05, então, retoma– se a narrativa sobre a vida de Piero della Francesa por meio de suas obras. Por meio do crítico de arte e sua visão peculiar e única da História, o leitor pode descobrir que della Francesca retorna a Borgo, na ocasião da morte de sua mãe. Esse fato da vida pessoal do renascentista é retratado como introdução para um comentário que será feito posteriormente sobre um trabalho do artista nessa mesma ocasião. Ele realiza dois santos em afresco “considerados belíssimos” e trabalha em um retábulo sobre madeira para o altar maior, no convento dos frades de Santo Agostinho, obra que hoje ainda existe, mesmo que de forma desmembrada. Ainda devido àquela triste ocasião, della Francesa realiza o afresco de uma Nossa Senhora da Misericórdia em uma confraria e, também, no Palácio dos Conservadores, uma Ressureição de Cristo considerada por Vasari como “dentre as obras que estão naquela cidade, e mesmo dentre todas, a melhor”.
A alusão a obras do autor é utilizada, por Giorgio Vasari, não só como elemento de construção da narrativa histórica a partir de uma perspectiva única. É também utilizada como forma de inserir novos personagens que mantiveram, em algum momento de suas vidas, contato com della Francesca. Um exemplo disso é a inserção de Domenico de Veneza na página 06 de seu livro, por ocasião de seu trabalho em Santa Maria di Loreto, em companhia do artista biografado.
Vasari realiza uma apresentação caótica de uma série de personagens, figuras e obras de arte. Porém, ainda assim, alguns se sobressaem da grande massa de nomes mencionados. Luigi Bacci, cidadão de Arezzo, é apresentado na página 06 como um daqueles que contratavam della Francesca para trabalhar. A obra em questão seria a Capela do altar maior, em São Francisco. Junto a essa introdução, Vasari insere um breve comentário sobre quais os objetos de estudo e suas respectivas histórias representadas em tal afresco. Cito: “Representam-se nesta as histórias da Cruz, desde quando os filhos de Adão, ao enterrá-lo, colocam sob sua língua a semente da árvore da qual nasceu o dito lenho; até a exaltação dessa Cruz feita pelo imperador Heráclio, o qual, trazendo-a sobre os ombros e caminhando com os pés descalços, entra com ela em Jerusalém.” O tema dos afrescos baseia-se no texto da Leggenda Aurea (Lenda Dourada), escrita por Jacopo da Varagine, no século XIII. A obra havia sido iniciada por Lorenzo da Bicci, em 1447, mas esse se afasta devido a complicações de saúde.
Ainda sobre a mesma obra, realiza-se um breve comentário e uma análise formal de atitudes realizadas por della Francesca no afresco. Essas são consideradas, pelo nosso autor, “dignas de serem louvadas”. A exposição inicia-se com uma referência aos vestidos das mulheres da Rainha do Sabá, que teriam sido executados de maneira doce e nova. A forma e a simetria em della Francesa também são objetos de destaque para Vasari, que classifica como “divinamente medidas” a ordem de colunas coríntias presentes no trabalho.
Percebe-se como Giorgio Vasari possui uma ideia de perfeição da forma e da criação muito evidente em relação às figuras criadas por Piero della Francesca. Essa ideia fica ainda mais clara quando na ocasião do comentário de Vasari sobre a figura de um camponês que está atento a ouvir Santa Helena falar enquanto são desenterradas as três cruzes: “não é possível melhorá-lo”, afirma o crítico. Outra vez, ainda sobre a ideia de perfeição da forma “o morto que, ao toque da cruz, ressuscita, também é muito bem feito.”
Nas linhas seguintes, a forma e a simetria são deixadas em segundo plano, dando espaço para outro aspecto formal do trabalho estudado. Vasari disserta sobre a utilização da luz por della Francesca, em contraste com a escuridão da noite. Um anjo que vem do alto com o símbolo da vitória a Constantino traz consigo uma luz que ilumina a tenda onde o Imperador dorme, juntamente com alguns soldados. Para Vasari, o que Piero della Francesca realiza com o jogo de luz citado, é ressaltar o quão importante é imitar as coisas verdadeiras e, tendo-o feito muito bem, entrega aos modernos um motivo para segui-lo.
E não somente o jogo de luz é motivo de destaque para Vasari, mas também a habilidade com que della Francesca realiza a construção dos sentimentos dos personagens do afresco que combatem, ainda imitando as coisas verdadeiras. Igualmente acontece com os acidentes, com os tombados e com os mortos, “os quais, por ter Piero reproduzido em afresco as armas que reluzem, merece grande louvor, não menos do que por ter feito na outra face, onde está a fuga e o afogamento de Maxêncio”. Ressalta-se que críticas recentes e revisões da obra contradizem Vasari, afirmando que o afogamento de Maxêncio não é realmente representado na obra.
Os cavalos construídos por Della Francesca são exaltados como “excepcionalmente belos e excelentes”, retratando outra vez a obsessão de Vasari pela perfeição da forma. O destaque da página 08, porém, é o comentário de Vasari em relação ao conhecimento de anatomia de Piero della Francesa, que seria excepcional para aqueles de sua época: “um homem metade nu e metade vestido à moda sarracena, sobre um cavalo magro muito bem resolvido com relação à anatomia, pouco conhecida na sua época.”
A análise das impressionantes habilidades de Piero Della Francesca com a matemática, já citada em páginas anteriores, é retomada na página 09. Giorgio Vasari descreve o pintor como um estudioso da matemática, que aplicou os conhecimentos de Euclides em suas obras. Apresenta della Francesca também como um geômetra, destacando a sua capacidade, não comum entre os homens da época, de alcançar os melhores giros traçados em corpos regulares. “As melhores descobertas que existem sobre esse assunto são de suas mãos”. Com essa frase, Vasari mostra a influência das técnicas matemáticas do renascentista, que não haviam sido exploradas em tal escala até então, em seus discípulos. Luca dal Borgo é mais uma vez mencionado e, com ele, o seu suposto plágio que divide a opinião de historiadores da arte até os dias atuais.
Vasari, ainda, realiza um breve comentário de duas linhas sobre a maneira de estudar e construir figuras realizada por della Francesca. Seria uma técnica supostamente aprendida com o seu mestre, Piero Lorentino d’Angelo, um pintor aretino. Cito: “Piero fazia modelos de terra e sobre estes colocava panos macios com uma infinidade de pregas, para retratá-los e servir-se deles.” Lorentino se configura, nas próximas linhas, como objeto de análise de Vasari, que dedica um espaço de seu texto e de suas reflexões sobre as principais realizações e trabalhos do artista. Mais uma vez, observa-se a visão peculiar de narrativa história utilizada pelo crítico de arte: a construção da biografia de determinada figura a partir da retomada de suas obras. Até mesmo uma história paralela e secundária da vida de Lorentino é retratada por Vasari a partir da narração de um suposto encontro desse com um camponês que teria lhe oferecido um porco em troca da criação de um S. Martinho acontece a partir da consideração da obra de arte enquanto elemento necessário para a reconstrução da narrativa histórica.
Para encaminhar a narrativa em direção a um final, três discípulos de della Francesa e suas respectivas obras são mencionadas nas páginas 10 e 11: Pietro da Castel della Pieve (Pietro Perugino), Luca Signorelli da Cortona (sendo esse aquele que, segundo Vasari, mais teria honrado o mestre) e Piero Borghese.
No último parágrafo da página final dessa breve narrativa sobre a vida de Piero Della Francesca, o leitor poderá se deparar com um breve resumo sobre o fim da vida do artista. Essa síntese pode ser considerada peculiar, uma vez que o crítico realiza a missão sem fazer referência a qualquer obra do pintor, o que se constitui como uma exceção em relação ao resto da biografia. Ainda assim, retoma-se, mais uma vez, a importância do pintor como geômetra: “Os livros de Piero estão, na sua maioria, na biblioteca do Frederico segundo Duque de Urbino, e são tais que merecidamente lhe renderam o nome de melhor geômetra que havia nos seus tempos.” É importante observar que, na edição original, a biografia era um pouco mais longa.